terça-feira, 31 de março de 2015

A MODA DAS SANDÁLIAS DE BORRACHA


José Pedro Araújo
Corria o início dos anos sessenta, quando chegou à região a nova sandália de borracha, do tipo havaiana. E causou verdadeiro frisson em meio a população local, como já havia ocorrido em todo o Brasil. Este artigo veio para substituir as velhas sandálias de couro cru usadas pela população, os tais chinelos de dedo ou currulepo, no linguajar dos mais cômicos. E o que era mais importante: poderia ser usada por todos, indistintamente. Homens e mulheres poderiam calçá-las em todos os momentos, em todos os locais, até mesmo para ir a festas e demais solenidades, pois se tratava de um produto da moda universal. Mal se sabia, naquela época, que as tais “lambretas” ou “japonesas”, como logo a população as denominou, iriam se perpetuar no gosto das pessoas e se inserir no costume de toda a população brasileira, quer rico, quer pobre.

Confortáveis, as sandálias tinham a vantagem também de serem usadas até mesmo no banheiro ou em qualquer lugar molhado sem exalar qualquer cheiro inconveniente. Além de tudo, era produzida em diversas cores, das mais simples às mais espalhafatosas, que mesmo assim eram bem recebidas.

Mas, quem hoje em dia as encontra em qualquer pequeno comércio, não tem nem vaga ideia de como era difícil encontrá-la no interior, logo que a moda chegou até nós. Adquirir um par desses novos objetos de consumo era sonho. Somente nos empórios situados nas cidades maiores era possível encontrar as tais lambretas, e assim mesmo por preços exorbitantes. 

As pessoas mais abastadas, que visitavam a capital com alguma frequência, logo começaram a usá-las na cidade, causando a maior inveja naqueles que não tinham a facilidade de adquirir um par, mesmo do modelo mais simples e barato. A marca mais cobiçada, e que logo se transformou em nome para o produto, havaianas, possuía melhor acabamento e maior durabilidade. Ganhou propaganda universal: havaianas, as que não tem cheiro, não soltam as tiras e não deformam! Entretanto, com o furor causado por estas sandálias no mercado, logo surgiram outras marcas, algumas não muito boas e nem tão duráveis, mas que tinham a conveniência de custarem bem menos.

Eu também me inseri entre aquelas pessoas que sonhavam adquirir um par desse produto da moda que virou sonho de consumo de toda a população. Ricos ou pobres; brancos, pretos, adultos ou crianças, todo mundo queria sair por ai com uma macia lambreta nos pés. A minha, foi um presente que ganhei do meu pai. Em uma das muitas viagens que ele sempre fez, trouxe-me de Codó um par de sandálias na cor preta, lindas de viver. Foi um momento de grande alegria para este jovem que também queria sair pela cidade mostrando suas belas chinelas da moda. 
No dia seguinte me aprontei para ir ao Grupo Escolar “Murilo Braga”, calcei as minhas sandálias novas e pisei macio no rumo da escola. Não me importei se não possuía os pés muito limpos, nem mesmo com a situação de penúria das minhas unhas, algumas arrancadas, e ainda por renascer, fato ocorrido nas peladas diárias que jogava com meus colegas.

Sai altaneiro, compenetrado, com o coração cheio de agradecimento aos meus pais pelo esforço dispensado na aquisição do meu calçado novo. Senti-me elogiado pelo olhar de inveja dos colegas de classe e profundamente envaidecido pelo modo como as garotas miravam os meus pés.

A alegria, entretanto, não durou muito. Logo me assaltou grande preocupação, quando retornava da escola. Em uma das muitas paradas para apreciar mais uma vez o meu belo par de calçados novos, vi que as bichinhas estavam gastando na parte de trás, onde os calcanhares imprimiam maior peso sobre elas. Que desgosto! As sandálias estavam cedendo atrás, estavam rebaixando, gastas no primeiro dia de uso. Preocupado com a tragédia que ameaçava minhas belas japonesas, ainda tentei caminhar na ponta dos pés por um bom trecho do caminho. Mas logo me cansei e resolvi adotar uma solução drástica: tirei as sandálias dos pés e voltei descalço para casa. Não me preocupei com a quentura insuportável que as calçadas me brindavam naquela hora. Que fosse isto, desde que as minhas novas japonesas não passassem mais por aquele acelerado processo de desgaste. Dali para frente, eu só as usaria em momentos especiais, como ir à igreja aos domingos. Ai então tomava as minhas sandálias e saia todo convencido, flutuando macio e cuidadoso pelas calçadas, tentando desgastá-las o menos possível.

Hoje em dia, as sandálias de borracha ganharam novas cores e desenhos, com formatos criados até mesmo por importantes designers. São também calçadas por celebridades do mundo inteiro e custam, em dólar, nesses países, os olhos da cara, tal como ocorreu por aqui na época do seu lançamento. Conseguiram se perpetuar em um mundo onde os produtos de maior consumo têm vida breve.

sábado, 28 de março de 2015

GENEALOGIA DE JOVITA



(Chicoacoram Araújo)

Do lado da escarpa Oeste daquela serra, que ainda resplandece no firmamento, nasceu Nadi,
Índia Itacoatiara da grande Nação Tabajara do sertão de Piripiri,
Que, assim como a filha do pajé Araquém, tinha os cabelos negros como a asa do  Assum-preto,
E de tão longos, chegavam a cintura graciosa e faceto.

Nadi, mãe das mães, casou-se com o índio Itagiba, que tinha os braços fortes como pedra,
Que gerou Ubiratan, o índio do tacape forte, e Moema, uma doçura de mulher.
Ubiratan gerou Ubirajara, o senhor das lanças, chefe de sabedoria e medra.
E Moema gerou Ubirani, tenaz e cordial como um chanceler.

De Ubirani nasceu Porã, o mais belo dos filhos; Apuana, exímio corredor das matas, e Ubajara, dono das armas e senhor da guerra.
Porã gerou Potira, flor exuberante, e Apoema, aquele que pressentiu de longe o grande invasor da terra.
Potira gerou Taiguara, o liberto do julgo dos homens do além-mar.
Apoema gerou Moacir, que sofreu por ver seu povo perseguido pelo branco que chegou para lhes exterminar.

E Moacir gerou Araci, a última descendente puro sangue da valente tribo Itacoatiara, agora já dizimada.
Araci, aurora de uma nova geração, casou-se com o caboclo Manoel, que manejava gado de uma fazenda da região para sustentar sua amada.
 Araci teve muitos filhos e filhas, que tinham feições desformadas, mas conservavam a beleza primitiva dos gentios.
Maria, uma dessas filhas mestiças, gerou Jovita e outros filhos, que foram entregues a parentes logo após a morte prematura da mãe em decorrência de partos doentios.

quarta-feira, 25 de março de 2015

O CAMINHO DA BOIADA

Gravura de Percy Lau


                                           José Pedro Araújo
         Final de semana tranquilo, sem estresse, aproveitei para rever um velho e monumental filme estrelado por John Waine, chamado Rio Vermelho. Já havia visto a película pelo menos outras duas vezes. Contudo, sempre encontro motivos para me surpreender com a grandiosidade da história ali contada: o transporte de uma boiada de mais de 10.000 cabeças, por cerca de mil e quinhentos quilômetros de distância, desde uma fazenda no Texas, até uma estação ferroviária muito distante. Observando as dificuldades enfrentadas por aqueles vaqueiros para conduzir o gado irrequieto, veio-me à mente a história da nossa colonização, do desbravamento dos sertões-de-dentro. A imagem daqueles homens de coragem ilimitada, conduzindo seus rebanhos por vales e serras sem fim, enfrentando a fúria dos índios e a escassez de água e de alimento, pode encontrar paralelo na saga vivida pelo nosso colono. A história vivenciada pelos nossos antepassados para implantar suas humildes fazendas de gado, com poucas cabeças, é bem verdade, é verídica, mas igualmente difícil e tormentosa quanto é aquela do filme.



        Se imaginarmos que no período a que me refiro a população maranhense se restringia aos moradores da ilha de São Luis, aos camponeses residentes nas ribeiras dos rios Mearim e Itapecuru, próximas à ilha, e a um pequeno grupo de destemidos aventureiros que abriam novas fazendas em Pastos Bons, no distante sudoeste do estado, veremos que havia um grande vazio a ser preenchido entre os rios Parnaíba e Tocantins.



        E foi de Pastos Bons que partiram os primeiros colonizadores para fundar uma pequena comunidade nas margens do rio Grajaú, no centro geográfico do grande vazio territorial que ocupava léguas e léguas de extensão. A luta daqueles pioneiros para fincar um pequeno povoado naquele lugar isolado e distante, passou por momentos de extremo perigo. Exemplo disso encontraremos quando todas as casas do povoado da Chapada (Grajaú) foram incendiadas pelos índios que infestavam a região, matando a maioria dos seus habitantes. Deste modo, a incipiente povoação foi completamente dizimada e os poucos moradores que conseguiram escapar da morte atroz partiram para Pastos Bons. Mas voltaram tempos depois para reconstruir o lugarejo que convencionaram chamar de Porto da Chapada.



        A história relata-nos que foram travadas batalhas renhidas e sangrentas para reocuparem aquelas terras, ocasião em pereceram centenas de pessoas dos dois lados da peleja.



        Não era fácil a vida do nosso sertanejo. Diariamente tinham que lutar contra animais ferozes, contra índios guerreiros e contra doenças indesejáveis para manterem-se no território conquistado. Assim, foram se formando as fazendas de gado na região do Mearim e do Grajaú, até culminar com a criação de Barra do Corda, mérito atribuído ao grande Manoel Rodrigues de Mello Uchoa, e de outros destemidos desbravadores. Para eles, uma viagem de centenas de quilômetros em lombo de burro ou a pé - por lugares sem caminhos abertos -, era pouco mais que uma aventura de final de semana. Foi assim que os colonizadores foram ocupando os sertões-de-dentro, espalhando seus rebanhos por locais cada vez mais distantes, sempre à procura de novas terras, férteis e com a presença de água, para estabelecer seus novos currais. O gado, por conseguinte, teve importância fundamental na colonização da região central do Maranhão, como de resto havia acontecido na pioneira Pastos Bons, mãe de todas as cidades das regiões do Mearim, Grajaú, Corda e Tocantins. Foi o boi, com a sua carne muito necessária, mas também com o couro para a confecção de mobílias e indumentárias de trabalho, quem amaciou a patadas, os caminhos que passaram a ser transitados pelo homem e que, muito depois, deu origem às nossas rodovias, tal qual as conhecemos hoje.



        Bela página da nossa história é essa, escrita pelos nossos pioneiros e seus rebanhos formados pelo gado Curraleiro (pé-duro). História escrita com sangue e lágrimas, mas também marcada de grande heroísmo e vitórias marcantes. Ao homem do sertão devemos a nossa existência. Ao boi, contudo, devemos a formação da nossa riqueza, o desenvolvimento do nosso distante sertão. Esses animais foram a essência do nosso desenvolvimento porque eles mesmos se transportavam, tocados por intrépidos ginetes em razão da falta de estradas e transportes. Hoje, esses animais são transportados em grandes e potentes carretas. Acabaram-se as grandes boiadas conduzidas por vaqueiros destemidos, montados em animais devidamente paramentados com cela e pelego, com  arreios de bridas vistosas e brilhantes.



        Ainda presenciei o final dessa epopeia em que grandes boiadas eram transportadas de Goiás para São Luis ou Teresina. Presidente Dutra, no passado, era passagem obrigatória de enormes rebanhos e suas numerosas comitivas. Ficava extasiado ao ouvir o toque do berrante por aqueles peões que iam à frente da boiada, chamando o gado para retomar a longa marcha. Outros tempos. Tempos que não voltam mais.     


segunda-feira, 23 de março de 2015

O Massacre do Alto Alegre: A História de uma Fotografia


Índios em frente ao internato - Foto publicada em revista dias antes do massacre
 José Pedro Araújo

        Em Post anterior revivi, apenas de passagem, a história do terrível massacre ocorrido no povoado Alto Alegre, a época município de Barra do Corda, em que várias dezenas de pessoas foram trucidadas pelos índios Guajajara. E entre os mortos estavam alguns padres capuchinhos italianos, além de algumas freiras também. Como sempre acontece nas grandes tragédias, o acaso atuou de maneira preponderante no sentido de preservar a vida de alguém, ou mesmo a providência divina. Daí a importância da fotografia publicada hoje. Consta abaixo da foto, que o seu autor foi o padre Mattia de Ponterânica (Mathias de Bérgamo, como apresenta o crédito da foto). A foto também possui importância histórica por ser a segunda vez que é publicada. A primeira vez pela imprensa maranhense no ano de 1900.
       Frei Mattia residiu em Barra do Corda no ano de 1900 quando veio transferido de Canindé, no Ceará. E em princípios de 1901 o padre foi transferido mais uma vez. Dessa vez para a Colônia do Prata, no Rio Grande do Sul. Sua transferência se deu poucos dias antes do massacre que dizimaria a vida dos seus colegas e conterrâneos, o que o livrou de uma morte certa. 
       A fotografia acima mostra um grupo de índios Guajajara em pose defronte ao seminário de Alto Alegre e, possivelmente, João Caboré entre eles, uma vez que o indígena tinha estreita ligação com os religiosos antes de perpetrar o terrível banho de sangue. João Caboré, apenas para reavivar a memória, foi o mentor do terrível desastre. 
       Frei Mattia voltaria depois para o Canindé onde prestaria inestimáveis serviços naquela paróquia. A comunidade, em reconhecimento pelos serviços inestimáveis feitos pelo religioso, mandou erigir uma estátua em sua homenagem.
Padre Mattia (a esquerda) em viagem missionária pelo interior maranhense
 

sábado, 21 de março de 2015

ETERNO RETORNO






                                                                                                                          (Elmar Carvalho)*

Memória:

Lâmina de desassossego

Cornucópia insana insaciável

A jorrar o passado

Que não morre nunca

Sempre ressuscitado

No eterno regresso

a nós mesmos.



Ó emoções redivivas

e ampliadas

das sensações de nervos expostos

nas carnes pulsantes de um passado

sempre lembrado.



recordações

que dão e são vida

de becos escuros, sem saída

de amores

            hoje boleros

                     bolores em flores

de ilusões perdidas

que se fazem dores

na florida ferida da saudade.



evocações

de dribles esquecidos

de gols frustrados e acontecidos

de um jogo que nunca termina

de uma malsinada sina sinuosa

de lágrimas caudalosas

incontidas, vertidas

das vertentes profundas

do peito – porto

sem tino e sem destino

feito somente de desatino.



as mulheres amadas

na juventude fugaz

            não envelhecem

            não se corrompem

            não morrem jamais

preservadas intactas e belas

na câmara ardente

incandescente da memória.



recordações de fantasmas

que já nos abandonaram

de amigos mortos

que nos acompanham

cada vez mais vivos

de sustos e gritos

de proscritos e malditos

de agouros e assombrações

de desdouros e sombras vãs, malsãs,

oriundos dos porões escavados

nos subterrâneos dos sobrados

       subterfúgios e refúgios

da memória.



O passado poderoso e renitente

retorna e continua vívido e presente

se contorcendo se retorcendo

       e se reacontecendo. 

* Elmar Carvalho é poeta, contista, cronista, crítico cultural, memorialista, juiz aposentado e membro da Academia Piauiense de Letras.